quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Parti, não por necessidade, parti para terminar os meus estudos. Fi-lo depois de muito trabalhar, de muito estudar, depois de ter apresentado um projecto no local certo, às pessoas certas, que confiaram nas minhas ideias. Eram 23 horas, do dia 17 de Janeiro de 2014, quando me despedi da minha família e de amigos. Abraços, sorrisos, lágrimas, umas mais intensas, outras no canto do olho. Lembrei-me do Bonga, vim para África, alegre, apesar do coração apertado por deixar, por uns meses, de estar perto dos meus. Embarquei num avião da STP Airways e dormi, imediatamente. Não vi mar, não vi o céu africano, não vi nada, sonhei apenas. Ainda procurava abrir os olhos totalmente quando a porta do avião se abriu. O lugar-comum do “cheiro de África” deixou de o ser: sim esse cheiro existe mesmo, é uma mistura de terra com um ar muito quente, que nos bate no rosto de forma intensa e no primeiro inspirar nos enche os pulmões como nunca antes. Tossi, maldito tabaco, ou bendito ar puro! Caminhei pela pista, suei entre um calor estranho e uma sauna de humidade! No posto de controlo respondi ao que me perguntaram e ali, naquele momento, percebi que leve-leve será a minha estadia em São Tomé e Príncipe. Recebido simpaticamente pelo Celso, responsável do Programa Descentralizado de Segurança Alimentar (PDSA), rumei à cidade.
 
Descrevo-vos São Tomé de forma simples: é uma cidade bastante pequena, que parou no tempo, com imensos edifícios coloniais. Poucos, muito poucos, são os que foram construídos pós-independência. Nenhum, mas nenhum, tem qualquer parecença com a Lisboa que deixei e foi esse charme e personalidade que me fez adorar, desde logo, a cidade. Giro, ou melhor, fantástico é o facto de tudo se passar na rua. Como está sempre imenso calor, as pessoas fazem a sua vida nas ruas e ruelas, lavam a roupa, cozinham, negoceiam, cantam e dançam. É uma cidade pobre, o embate social, económico e cultural é comparável a um murro forte nos rins, mas a alegria é tanta que me envergonho das “queixinhas” que algumas vezes fazia em Lisboa. É "leve-leve” amigo português! Adoro a expressão. Leve-leve significa que tudo se faz tudo com muita calma e paciência, num ritmo bastante lento, sem stress, “cuida do coração”. Por mim em seis dias já tinham montado todo o arsenal para iniciar o projecto, por mim, digo bem, por eles é mais uma constante boa disposição, sempre acompanhada de música, uns passos de dança e vai-se fazendo. Aceito, não são eles que se têm de adaptar aos meus hábitos, mas aceito com um sorriso. Talvez volte para casa com a mesma vontade de ser pró-activo, mas bem mais compreensivo perante os percalços da realidade. E a rir, sempre.
 
Existem, no entanto, momentos em que não é possível esboçar sequer um sorriso. Reparem, uma centopeia decidiu dar-me as boas vindas ao meu novo lar. Certo, era só uma centopeia, certo que me foi explicado que são venenosas (não mortais, claro, provocam apenas grandes inchaços), mas tinha o tamanho de um palmo de mão. Isso, um palmo, 15/20 cm de bicho! A hesitação foi entre o pegar na dita, fazer-lhe uma festinha e pô-la na rua ou… não interessa! E ontem, bem ontem enquanto via um filme na minha cama mosquiteira, pareceu-me que algo estranho me observava na parede. Não liguei, pensei que era imaginação, mas depois a minha atenção ficou presa, tão presa, qual amor esfusiante de lábios encarnados a voarem no céu africano: era, apenas e só, uma aranha do tamanho da minha mão, coisa pouca, pequenita e fofa. Reparem, eu escrevi, do tamanho da minha mão, sejam solidários! Acho que na minha vida nunca dei tanto valor a chinelos. Adormeci meio a medo, não escondo. Às seis da manhã já anda tudo na rua. Aqui acordam por volta das 05:00, hora do nascer do sol, as escolas começam às 07:00 e acabam às 17:30. E como a população toda sabia da minha vinda, oferecem-me três momentos do dia que me fazem sentir mais em casa: existem três horas de ponta, um trânsito brutal (06:30, 12:30 e 17:30). Imaginem a A5, na zona do Monsanto, às 23:00, é quase igual, mas um bocadinho menos.
 
Sim, já sei, comida! É simplesmente deliciosa, o Eleven ao pé da Dona Lilia é um restaurantezinho! Adoro banana-pão, adoro as espetadas de búzios e as folhas de matabala. Aqui existe uma panóplia de frutas inacreditável, muitas que nem conhecia e em todo o lado, em todas as árvores. E eu até percebo que só passaram seis dias, ainda é novidade, mas se quero comer uma goiaba vou ao meu quintal e apanho da árvore! Ou um mamão (que é a papaia de cá) também aqui tenho. O peixe, bem o peixe é frugal! Ok, frugal numa cidade tão pobre parece exagero, mas chega do mar directamente para a grelha, fresco, e depois é bem cozinhado! E mesmo que esteja a ser comido em pratos com 60 anos e sentado num tronco tudo me sabe deliciosamente bem. Carne quase não existe e a que existe é bastante cara. Disseram-me que me arranjam uma cabra a um preço bom, mas que tenho de ser eu a mata-la e cozinha-la. Viva o peixe, o pouco colesterol, a silhueta e a vida das cabrinhas!
 
Nota1: a minha vida passou dos 80 para os 8, mas um 8 cheio de coisas positivas e com uma nova perspectiva de como é viver, aprender a viver, mesmo.
 
Nota2: poucas são as pessoas com que me cruzei que sabem ler e escrever e nós em Portugal com tantos professores desempregados. Uma cooperação mais activa entre os dois países ajudaria, não?
 
Nota3: uma criança de seis anos perguntou-me: “o que és tu?”. Nunca tinha visto um branco na vida.
 
MG/TG

1 comentário:

  1. É claramente uma vida vivida em solo Africano. Ao ler este texto, revivi a experiência que tive na Guiné-Bissau. Tudo se passa muito devagar, o poder de observação que o ser humano tem é incrivel.. Nos meus primeiros dias não tinha qualquer reacção, observar era o mais importante, conseguia sentir os cheiros e a alegria vivida num mundo onde nada se passa e tudo acontece. Logo me apercebi que isto era África.Viver o dia a dia perante esta realidade, seria o meu desafio ao longo de 3 meses. O povo reage á côr de pele, mingando tudo o que lhes faz falta, o alimento do branco é comida de rico, uma simples baguete com manteiga satisfazia o grupo de crianças que se juntavam á porta de casa, incrivel como as coisas simples têm tanta importância. Afinal uma Missão de Risco Elevado não passaria de uma lição de vida. Vou continuar a acompanhar as experiências e lições de vida para todos nós, obrigado TG.. um abraço
    MP

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